Em 1999 escrevi um texto para o Relatório Azul, editado pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS. Na época exercia a presidência a Deputada Maria do Rosário. Infelizmente o conteúdo continua atual.
‘Toda pessoa tem o direito ao trabalho, à
livre escolha de emprego, a condições
justas
e favoráveis de trabalho e à proteção contra o
desemprego'.
(Artigo XXIII - Declaração
Universal dos Direitos Humanos)
Nossa sociedade está
impregnada pela violência que se expressa em todas as áreas.
Vivemos numa verdadeira 'guerra econômica' e em nome dessa guerra
são utilizados, no mundo do
trabalho, métodos cruéis a fim de excluir os que não estão aptos.
Quanto aos aptos para o combate, exigem-se desempenhos sempre
superiores em termos de produtividade, de disponibilidade, de
disciplina e de abnegação. Somente
sobreviveremos, dizem-nos, se nos superarmos e nos tornarmos ainda
mais eficazes que nossos concorrentes (Dejours,1998).
Essa 'guerra' tem
vitimado milhares de seres humanos e se desenvolve dentro de aspectos
que merecem um maior debate. Para compreender essa realidade de forma
mais profunda é preciso um olhar 'por trás das vitrinas' e focar os
ambientes de trabalho que estão
impregnados de sofrimento humano. O sofrimento dos que temem não
satisfazer, não estar à altura das imposições
da organização do trabalho:
imposições de horário, de ritmo, de formação, de informação,
de adaptação à cultura e à ideologia da empresa, às
exigências do mercado, às relações com os clientes, entre outros
componentes.
Vivemos a época do
mercado ilimitado onde é utilizada
munição pesada sobre os trabalhadores num processo de competição
total. Verdadeiras artimanhas gerenciais são impostas aos que ainda
têm emprego, com intensas
exigências de produção. São horas extras constantes, ritmo de
trabalho alucinante, metas e mais metas. O individualismo é
estimulado num contexto de permanentes disputas. Colega controla
colega nos circulos de qualidade, todos disputam entre si pela
manutenção do emprego.
Para
garantir a aplicação da política
neoliberal, é peça fundamental o desemprego. Só
assim conseguem impor plenamente a subjugação, com pouca ou nenhuma
reação. Afinal você ainda tem sorte de estar empregado! A
precarização do trabalho através
da chamada flexibilização do
trabalho, modo de maximizar os lucros com diminuição de custos
trabalhistas, escapando da pressão sindical e ampliando ainda mais a
autonomia nas práticas de demissão, tem garantido o ideário
neoliberal.
Tudo isso realizado
com a complacência da Justiça. A lei, ao invés de garantir e
universalizar direitos, está a destituir indivíduos de suas
prerrogativas de cidadania; produzindo uma fratura entre a figura
civil do trabalhador e a do pobre incivil. Vivemos uma triste
realidade onde o mercado fornece o retrato acabado de uma sociedade
na qual direitos não fazem parte das regras que organizam a vida
social (Telles, 1994).
Essa realidade é
mostrada como único caminho a seguir. Como o preço a se pagar para
o desenvolvimento e o progresso. Uma forte carga ideológica e de
propaganda está produzindo a banalização da injustiça social. O
sofrimento, o medo, o adoecimento, o desemprego e até o suicídio no
trabalho são vistos com passividade, quase beirando a normalidade.
Não é possível
ficar insensível aos milhares de
trabalhadores que morrem em acidentes de trabalho. O Brasil ponteia
as estatísticas mundiais. Em sua
maioria são acidentes ocasionados por omissão
das empresas nas aplicações das normas de segurança e da exigência
aos trabalhadores para garantir a produção,
mesmo colocando em risco a própria vida. Apesar das estatísticas
pouco confiáveis do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS),
foram registrados, em 1997, 306.709 acidentes de trabalho e 29.707
doenças profissionais ou do trabalho, entre as quais despontam as
Lesões por Esforços Repetitivos (LER), que representam 80 a 90% dos
casos.
Essa realidade, que
vitima seres humanos em número superior às
guerras civis existentes no mundo, traz um componente social
aviltante. As práticas administrativas das empresas, depois de
negligenciar quanto à saúde de seus empregados, não os acolhe.
No
Banco Meridional, assumido pelo Grupo Bozano Simonsen, funcionários
que retomaram ao trabalho com restrições do INSS por terem LER,
foram colocados em um porão realizando trabalhos em condições
desumanas, que chocou os próprios fiscais da Delegacia Regional do
Trabalho. Foram duplamente penalizados, além da doença, pela
discriminação e humilhação. Mas essa é a lógica do mercado
total e ilimitado: os que não podem produzir a pleno vapor são
jogados à margem.
Isso faz lembrar a
história contada por uma companheira do Sindicato dos Sapateiros,
que comparou o discurso de seus patrões, da 'grande família' que a
empresa representava, com a família dos esquimós. Dizia ela:
'Realmente somos uma família. Uma família de esquimós, que quando
um membro da comunidade envelhece ou fica inválido são levados para
a planície gelada e deixando-os a sós para morrerem!'
Como não nos
revoltar com os castigos impostos em uma fábrica de calçados, fruto
de denúncia na CCDH da Assembleia Legislativa, onde os trabalhadores
recebem castigo, com a humilhação pública, quando faltam ao
serviço e têm a ida ao banheiro controlada.
Como não se
sensibilizar com o número de suicídios ocorridos na categoria
bancária que já passam de uma centena. Somente de 1993 a 1995 foram
72, uma média de um suicídio a cada 15 dias. Foram mortes
associadas à depressão profunda originada, em sua grande maioria,
pelas pressões no trabalho.
No Banco do Brasil, a situação
foi mais trágica. Ocorreram num período de dois anos em torno de 30
suicídios, em um momento de reestruturação
do Banco, com transferências arbitrárias, perseguições, brutal
achatamento salarial e demissões.
A perversidade da
empresa moderna se expressou no Banco do Brasil com a contratação
de uma consultoria para manipular sentimentos de desvínculo com o
Banco, onde foram ensinados todos os passos para consumar os milhares
de desligamentos.
É preciso chamar a
atenção da sociedade, colocando em pauta a discussão sobre o
sofrimento no trabalho. 'Tentativas de suicídios ou suicídios
consumados, no local de trabalho, que atestam provavelmente o impasse
psíquico criado pela falta de interlocutor que dê
atenção àquele que sofre e pelo mutismo generalizado' (Dejours).
O capitalismo cria
contradições e problemas que não
consegue resolver, gerando a desigualdade e a desumanidade. Ele
'exige um crescimento de produtividade sem fim’. Contudo
'diferentemente das máquinas e de
seus produtos, que se tornam cada vez mais eficientes e baratos, os
seres humanos permanecem obstinadamente humanos' .(Hobsbawm).
É imprescindível
e urgente o enfrentamento à ordem
imposta através do modelo
neoliberal, que tem trazido consigo um rastro de sofrimento. Mudar
essa situação significa desenvolvermos, na sociedade, a consciência
crítica sobre o que é a ordem vigente e a solidariedade como
contraponto às práticas de estímulo à competição entre os
trabalhadores.
O desenvolvimento de
uma consciência crítica demanda a busca por desvendar as
contradições sociais. ֹ
É preciso interagir nos corações e mentes dos
trabalhadores, dividir suas carências e afetos, com ações que
escancarem o dia-a-dia real.
Segundo Marx 'é exatamente a cegueira
do pensamento consciente do homem que impede de tomar conhecimento de
suas verdadeiras necessidades humanas e de ideais nele arraigados. Só
se a falsa percepção é transformada em verdadeira, isto é, só se
tomamos conhecimento da realidade, ao invés
de deturpá-la por meio de racionalizaçõs e ficções, podemos
dar-nos conta de nossas necessidades reais e verdadeiramente
humanas'.
A solidariedade
entre os trabalhadores é
transformadora, pois vai contra a ordem capitalista, individualista
em essência. É preciso desenvolver
uma 'política que seja conscientemente oposta à
fragmentação da sociedade atual que impõe, de forma crescente, a
separação dos indivíduos na produção e na vida privada. Ela
tende a desconstituir a vida coletiva e privatizar, cada vez mais os
espaços públicos qualificados(..) Devemos incidir no cotidiano
buscando a disputa por novos valores, capazes de subsidiar projetos
gerais e também alimentar a articulação dos novos sujeitos'
(Genro, 1997).
Ainda assim,
acreditamos que a vida pode ser melhor e que viver do próprio
trabalho deve ser algo dignificante, não um castigo. Por isso,
lutamos para transformar essa realidade. Os movimentos sociais
precisam vencer os desafios das novas tecnologias e das novas formas
de organização do trabalho, sem vacilar no enfrentamento ao modelo
imposto.
O trabalho em
Direitos Humanos tem o desafio de abarcar essa temática buscando
construir essa interlocução, rompendo com o silêncio e a omissão."
Mauro Salles
Coordenador
do Departamento de Saúdo
do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região.
Referências
bibliográficas do texto "Violência
organizacional no mundo do trabalho":
ARRUDA JR., Edmundo
Lima; RAMOS, Alexandre (org.). Globalização,neoliberalismo e o
mundo do trabalho. Curitiba: Edibej, 1998.
DEJOURS, Christophe.
A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
GENRO, Tarso, A
crise do sindicalismo e a regeneração da solidariedade. Porto
Alegre. 1997.
HOBSBAWM, Eric, Era
dos Extremo s. São Paulo; Companhia das Letras, 1995.
TELLES, Vera,
Pobreza e cidadania: precariedade e condições de vida. In:
MARTlNS, H.S.; RAMALHO, J.R (org.), Terceirização - Diversidade e
Negociação no Mundo do Trabalho. São
Paulo; Hucitec, p. 85-111, 1994.
XAVIER, Ernani
Pereira. Um minuto de silêncio: réquiem
aos bancários mortos no trabalho. Porto Alegre. Sind. Bancários
de Porto Alegre, 1998.