terça-feira, 20 de agosto de 2013

VIOLÊNCIA ORGANIZACIONAL NO MUNDO DO TRABALHO


Em 1999 escrevi um texto para o Relatório Azul, editado pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS. Na época exercia a presidência a Deputada Maria do Rosário. Infelizmente o conteúdo continua atual.





Toda pessoa tem o direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas
 e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego'.

(Artigo XXIII - Declara
ção Universal dos Direitos Humanos)


Nossa sociedade está impregnada pela violência que se expressa em todas as áreas. Vivemos numa verdadeira 'guerra econômica' e em nome dessa guerra são utilizados, no mundo do trabalho, métodos cruéis a fim de excluir os que não estão aptos. Quanto aos aptos para o combate, exigem-se desempenhos sempre superiores em termos de produtividade, de disponibilidade, de disciplina e de abnegação. Somente sobreviveremos, dizem-nos, se nos superarmos e nos tornarmos ainda mais eficazes que nossos concorrentes (Dejours,1998).
Essa 'guerra' tem vitimado milhares de seres humanos e se desenvolve dentro de aspectos que merecem um maior debate. Para compreender essa realidade de forma mais profunda é preciso um olhar 'por trás das vitrinas' e focar os ambientes de trabalho que estão impregnados de sofrimento humano. O sofrimento dos que temem não satisfazer, não estar à altura das imposições da organização do trabalho: imposições de horário, de ritmo, de formação, de informação, de adaptação à cultura e à ideologia da empresa, às exigências do mercado, às relações com os clientes, entre outros componentes.
Vivemos a época do mercado ilimitado onde é utilizada munição pesada sobre os trabalhadores num processo de competição total. Verdadeiras artimanhas gerenciais são impostas aos que ainda têm emprego, com intensas exigências de produção. São horas extras constantes, ritmo de trabalho alucinante, metas e mais metas. O individualismo é estimulado num contexto de permanentes disputas. Colega controla colega nos circulos de qualidade, todos disputam entre si pela manutenção do emprego. 
Para garantir a aplicação da política neoliberal, é peça fundamental o desemprego. Só assim conseguem impor plenamente a subjugação, com pouca ou nenhuma reação. Afinal você ainda tem sorte de estar empregado! A precarização do trabalho através da chamada flexibilização do trabalho, modo de maximizar os lucros com diminuição de custos trabalhistas, escapando da pressão sindical e ampliando ainda mais a autonomia nas práticas de demissão, tem garantido o ideário neoliberal.
Tudo isso realizado com a complacência da Justiça. A lei, ao invés de garantir e universalizar direitos, está a destituir indivíduos de suas prerrogativas de cidadania; produzindo uma fratura entre a figura civil do trabalhador e a do pobre incivil. Vivemos uma triste realidade onde o mercado fornece o retrato acabado de uma sociedade na qual direitos não fazem parte das regras que organizam a vida social (Telles, 1994).
Essa realidade é mostrada como único caminho a seguir. Como o preço a se pagar para o desenvolvimento e o progresso. Uma forte carga ideológica e de propaganda está produzindo a banalização da injustiça social. O sofrimento, o medo, o adoecimento, o desemprego e até o suicídio no trabalho são vistos com passividade, quase beirando a normalidade.
Não é possível ficar insensível aos milhares de trabalhadores que morrem em acidentes de trabalho. O Brasil ponteia as estatísticas mundiais. Em sua maioria são acidentes ocasionados por omissão das empresas nas aplicações das normas de segurança e da exigência aos trabalhadores para garantir a produção, mesmo colocando em risco a própria vida. Apesar das estatísticas pouco confiáveis do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), foram registrados, em 1997, 306.709 acidentes de trabalho e 29.707 doenças profissionais ou do trabalho, entre as quais despontam as Lesões por Esforços Repetitivos (LER), que representam 80 a 90% dos casos.
Essa realidade, que vitima seres humanos em número superior às guerras civis existentes no mundo, traz um componente social aviltante. As práticas administrativas das empresas, depois de negligenciar quanto à saúde de seus empregados, não os acolhe. 
No Banco Meridional, assumido pelo Grupo Bozano Simonsen, funcionários que retomaram ao trabalho com restrições do INSS por terem LER, foram colocados em um porão realizando trabalhos em condições desumanas, que chocou os próprios fiscais da Delegacia Regional do Trabalho. Foram duplamente penalizados, além da doença, pela discriminação e humilhação. Mas essa é a lógica do mercado total e ilimitado: os que não podem produzir a pleno vapor são jogados à margem.
Isso faz lembrar a história contada por uma companheira do Sindicato dos Sapateiros, que comparou o discurso de seus patrões, da 'grande família' que a empresa representava, com a família dos esquimós. Dizia ela: 'Realmente somos uma família. Uma família de esquimós, que quando um membro da comunidade envelhece ou fica inválido são levados para a planície gelada e deixando-os a sós para morrerem!'
Como não nos revoltar com os castigos impostos em uma fábrica de calçados, fruto de denúncia na CCDH da Assembleia Legislativa, onde os trabalhadores recebem castigo, com a humilhação pública, quando faltam ao serviço e têm a ida ao banheiro controlada.
Como não se sensibilizar com o número de suicídios ocorridos na categoria bancária que já passam de uma centena. Somente de 1993 a 1995 foram 72, uma média de um suicídio a cada 15 dias. Foram mortes associadas à depressão profunda originada, em sua grande maioria, pelas pressões no trabalho. 
No Banco do Brasil, a situação foi mais trágica. Ocorreram num período de dois anos em torno de 30 suicídios, em um momento de reestruturação do Banco, com transferências arbitrárias, perseguições, brutal achatamento salarial e demissões.
A perversidade da empresa moderna se expressou no Banco do Brasil com a contratação de uma consultoria para manipular sentimentos de desvínculo com o Banco, onde foram ensinados todos os passos para consumar os milhares de desligamentos.
É preciso chamar a atenção da sociedade, colocando em pauta a discussão sobre o sofrimento no trabalho. 'Tentativas de suicídios ou suicídios consumados, no local de trabalho, que atestam provavelmente o impasse psíquico criado pela falta de interlocutor que dê atenção àquele que sofre e pelo mutismo generalizado' (Dejours).
O capitalismo cria contradições e problemas que não consegue resolver, gerando a desigualdade e a desumanidade. Ele 'exige um crescimento de produtividade sem fim’. Contudo 'diferentemente das máquinas e de seus produtos, que se tornam cada vez mais eficientes e baratos, os seres humanos permanecem obstinadamente humanos' .(Hobsbawm).
É imprescindível e urgente o enfrentamento à ordem imposta através do modelo neoliberal, que tem trazido consigo um rastro de sofrimento. Mudar essa situação significa desenvolvermos, na sociedade, a consciência crítica sobre o que é a ordem vigente e a solidariedade como contraponto às práticas de estímulo à competição entre os trabalhadores.
O desenvolvimento de uma consciência crítica demanda a busca por desvendar as contradições sociais. ֹ É preciso interagir nos corações e mentes dos trabalhadores, dividir suas carências e afetos, com ações que escancarem o dia-a-dia real.
Segundo Marx 'é exatamente a cegueira do pensamento consciente do homem que impede de tomar conhecimento de suas verdadeiras necessidades humanas e de ideais nele arraigados. Só se a falsa percepção é transformada em verdadeira, isto é, só se tomamos conhecimento da realidade, ao invés de deturpá-la por meio de racionalizaçõs e ficções, podemos dar-nos conta de nossas necessidades reais e verdadeiramente humanas'.
A solidariedade entre os trabalhadores é transformadora, pois vai contra a ordem capitalista, individualista em essência. É preciso desenvolver uma 'política que seja conscientemente oposta à fragmentação da sociedade atual que impõe, de forma crescente, a separação dos indivíduos na produção e na vida privada. Ela tende a desconstituir a vida coletiva e privatizar, cada vez mais os espaços públicos qualificados(..) Devemos incidir no cotidiano buscando a disputa por novos valores, capazes de subsidiar projetos gerais e também alimentar a articulação dos novos sujeitos' (Genro, 1997).
Ainda assim, acreditamos que a vida pode ser melhor e que viver do próprio trabalho deve ser algo dignificante, não um castigo. Por isso, lutamos para transformar essa realidade. Os movimentos sociais precisam vencer os desafios das novas tecnologias e das novas formas de organização do trabalho, sem vacilar no enfrentamento ao modelo imposto.
O trabalho em Direitos Humanos tem o desafio de abarcar essa temática buscando construir essa interlocução, rompendo com o silêncio e a omissão."

Mauro Salles
Coordenador do Departamento de Saúdo do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região.



Referências bibliográficas do texto "Violência organizacional no mundo do trabalho":
ARRUDA JR., Edmundo Lima; RAMOS, Alexandre (org.). Globalização,neoliberalismo e o mundo do trabalho. Curitiba: Edibej, 1998.
DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
GENRO, Tarso, A crise do sindicalismo e a regeneração da solidariedade. Porto Alegre. 1997.
HOBSBAWM, Eric, Era dos Extremo s. São Paulo; Companhia das Letras, 1995.
TELLES, Vera, Pobreza e cidadania: precariedade e condições de vida. In: MARTlNS, H.S.; RAMALHO, J.R (org.), Terceirização - Diversidade e Negociação no Mundo do Trabalho. São Paulo; Hucitec, p. 85-111, 1994.
XAVIER, Ernani Pereira. Um minuto de silêncio: réquiem aos bancários mortos no trabalho. Porto Alegre. Sind. Bancários de Porto Alegre, 1998.


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