terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A PLATAFORMA




P. e o povo de Bouvó não conseguiam sair do, cada dia mais ínfimo, pedaço de terra que os abrigava.

A montanha rochosa, enorme, os empurrava em direção ao mar bravio, com imensas pedras a encurralá-los.

A montanha avança, ou seria o mar?

Eram sufocados, também, por uma minoria que habitava o topo da montanha. Eram obrigados a pagar tributos com parte da sua produção de alimentos e de utensílios. Caso contrário, os povos do topo, represavam os córregos de água cujas nascentes estavam sob seu controle.

Viam com esperança aquela ilha que só aparecia, no longínquo horizonte, em dias claros.

Mas era impossível a saída para o mar. Seja a nado ou mesmo com embarcações. Voar não era coisa para os homens e para as mulheres. Todas tentativas terminaram em desastres.

Eram pedras pontudas, ondas gigantescas, como ninguém pode imaginar. Só o povo de Bouvó sabia. Todos os dias olhavam com medo para as imensas vagas que explodiam nas imensas rochas.

Buscaram, com muitas tentativas e por muitos anos, conquistar a montanha. Várias expedições de populares tentaram atingir o topo. Muitos morreram.

Quem chegou mais perto foi a turma organizada por P. , mas quando estavam quase chegavam no cume, os do topo, poucos moradores de lá, os excluiu provocando avalanches. Muitas perdas de vidas rolando montanha abaixo. P. sobreviveu por um milagre.

No leito de quase morte, entre um sonho e outro, P. idealizou a construção de uma plataforma que sobrepujaria os obstáculos e garantiria o acesso ao alto-mar, longe das ondas gigantes e dos rochedos abissais. Assim poderiam zarpar com embarcações.

“Uma plataforma para avançar, superar as ondas e os rochedos”.

Mas foi recebido pelo povo de Bouvó com ceticismo.

Anos de polêmica. Não foi fácil convencer.

Havia aquele que dizia ser impossível. “Não temos os insumos adequados”.

Alguns apoiaram buscando levar vantagem com o empreendimento, o que gerava desconfiança.

Outros temeram que a liderança de P. crescesse se o empreendimento desse certo. Assim perderiam espaço político e liderança no futuro, naquela ilha.

Vários alegavam não valer o risco da travessia e acreditavam ser uma ilha inóspita, sem garantias para a sobrevivência de todos.

O projeto foi sendo adiado pois a Plataforma precisava do engajamento de todos.

Mas a montanha continuava a avançar sobre o povo, estreitando os espaços e o tempo. Ou seria o mar?

P. defendia que, se fosse para morrer esmagados ou servis, era melhor arriscar, acreditar na utopia. Aquela ilha era a esperança e, como esperança não é uma emoção passiva, exige gente em ação, quase todos decidiram ir atrás de seus sonhos

Premidos pelas circunstâncias, enfim decidiram levar adiante a ideia.

Alguns decidiram não participar e ficar. Eram pertencentes às médias, como eram chamados esse grupo de indivíduos.

Nem todos os médias ficaram, mas uma ampla maioria resolveu fazer juz à denominação e fazer média com os do topo

Decidiram realizar mais uma tentativa de escalar a montanha e negociar com os do topo uma convivência onde se dispunham a uma servidão voluntária.

Nunca se soube ao certo sobre os resultados da tentativa. Parece que ficaram no meio do caminho.

Levaram incontáveis anos a empreitada de construir a Plataforma para o povo que decidiu acreditar ser possível conquistar o mundo novo.

Muitos moradores morreram, outros nasceram. Gerações renovaram-se, mas a ideia da plataforma os manteve unidos diante do medo da montanha e pela esperança de tempos melhores.

E a montanha continuava a se mover. Ou seria o mar?

Por fim, terminaram a construção da plataforma comum e dos barcos que levariam a todos até aquela ilha.

A plataforma era uma construção imponente. Contornava os arrecifes em lugares onde diminuía seu tamanho. Estendia-se a quilômetros, mar adentro, até onde o mar acalmava-se e as ondas não formavam-se.

Em um dia ensolarado iniciaram a travessia. Zarparam em seus barcos rumo a ilha. Os olhares esperançosos compartilhavam corpos ansiosos onde o medo ainda era presente.

O tempo bom não acalmou a fúria do oceano. A travessia foi tortuosa. Vagas enormes desequilibravam os navios. Alguns afundaram. Mas a maioria conseguiu triunfar pois não tiveram medo de ousar.

Surpreenderam-se ao constatar que não era uma ilha. Era um continente.

Por todos os lados haviam muitas montanhas a conquistar.

Anos se passaram e P. despediu-se do povo e subiu a montanha mais alta.

De lá P., ancião, olha para a montanha de Bouvó sendo engolida pelo mar. Ou seria a montanha que afundou sob suas estruturas?

Constatou que Bouvó não era um continente, era uma ilha!

Quem tinha tudo no topo daquela montanha agora tem o mundo líquido que construíram, boiando no mar bravio.

P. espera, tranquilo e solitário, sua luz interior apagar-se.

E consagrou-se à única tarefa de dormir e sonhar.

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