“Eu não sei o
que acontecerá agora. Temos dias difíceis pela frente. Mas isso realmente não
tem importância para mim, agora, porque eu estive no topo da montanha. E eu não
me importo(...)E eu vi a Terra Prometida. Eu posso não chegar lá com vocês. Mas
eu quero que vocês saibam que nós, como um povo, chegaremos à Terra Prometida.
(Martin Luther King)
Quando tinha 10 anos, S. construiu um carrinho de rolimã.
Diariamente tentava subir o morro e levar, no seu carrinho de rolimã, seus
sonhos. Mas por anos a fio, quando estava chegando perto do cume, o carrinho de
rolimã despencava e descia ladeira abaixo. Mas S. não desistia e sempre voltava
a descer ao pé do morro e recomeçava sua subida.
Subia
o morro rumo a minha casa.
Depois
de muitos anos consegui chegar ao topo do morro sem que meu carrinho caísse
ladeira abaixo.
Minha
casa ficava lá em cima e se chamava “conquista”.
Foi
possível construí-la depois de muita luta e sacrifícios.
Aliás,
moramos tempos na rua plana.
Subia
diariamente o morro, que era alto e íngreme. Levava, para cima, no carrinho de
rolimã, meus sonhos, meu futuro, meu presente.
Depois
de viver num buraco na base do morro, conseguimos levar o carrinho
morro acima.
Educação;
moradia digna; emprego; direitos; dignidade. Tudo empilhado e bem amarrado para
não cair do carrinho de rolimã.
Meu
carrinho estacionava no topo da montanha e não caia mais.
Haja
hoje para tanto ontem.
Só que,
certo dia, quase chegando lá em cima, perto do topo do morro, um rapaz bem
vestido, com tênis nike, camisa de marca e sei lá mais o quê, aparece do nada.
Me
olha com seus olhos azuis, com suas fáscias
tensas, exalando ódio e preconceitos.
“Istava muito desequilibrado”, como me
ressaltou Genésio, “com o peito inflado, metido a besta”, completou.
Tentei
um istmo de diálogo, como minha família ensinou: não regredir, não se deixar
silenciar. Mas nossas ilhas não se conectaram.
Mas o
mimado sujeito, achava que os desiguais devem ser silenciados.
Lembrei
neste instante que “a inveja é um tipo de desejo impotente: Ele olha para o
invejado e se sente menor, daí sua raiva, o seu rancor. Ele não pode ser outra
pessoa, ele não pode ser melhor do que é”.
E o
cara, corta a corda em que eu puxava meu carrinho de rolimã.
O
carrinho despencou morro abaixo.
Corri
atrás desesperado.
O
rapaz ria.
Por
instantes intermináveis vi o futuro voltar ao passado;
O
presente negar futuro;
O
presente impor o passado.
Tropecei
em uma pedra que atravancava o caminho.
Arrastei
meu queixo no areão.
Estirado
no chão, com a alma esfolada, quase voltando ao útero de minha bisavó, consigo
ver uma multidão subindo o morro.
Carregavam
meu carrinho de rolimã com todos meus apetrechos, meus sonhos bem amarrados.
De
fato, sozinhos podemos até chegar, mas é muito mais difícil manter o carrinho
lá em cima. Acompanhados vamos mais longe.
Na
frente de todos, vejo meu neto ainda não nascido.
Haja
tanto amanhã para muito hoje.