domingo, 21 de fevereiro de 2016

ALZHEIMER SOCIAL



O sono da razão cria monstros (Goya).
Pior que o sono da razão, de Goya, é o sono da memória…
tenho tido longas conversas com a minha paranoia, tentando acalmá-la. (L.F. Veríssimo)

O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos” (Simone de Bouvoir)



Mais uma vez na história brasileira, parcelas consideráveis da classe média são mobilizadas para fortalecer o pacto conservador brasileiro contemporâneo.

Sabemos que as classes médias são segmentadas, possuem grupos com interesses e ideias distintas. Mas seguimentos numerosos e importantes estão a defender, com paixão incomum, um núcleo de ideias apavorantes.

Esses segmentos apaixonados apagam da memória recente, com apagador umbilical, os avanços sociais indiscutíveis.

Perdem funções cognitivas básicas ao não lembrar o que significou anos de ditadura. Ao se fazer de tolo e não considerar os prejuízos sociais dos anos FHC com desemprego, privatizações, perda de soberania, crise econômica, onde o Brasil quebrou três vezes.

Além de seus interesses “ameaçados” – teme por seu lugar de privilégio devido ao encurtamento do espaço social com a inclusão de amplos setores das classes populares, que foi a principal obra dos últimos governos.

Esquecem da melhora social do país, dos ganhos de todos, inclusive criando muitos pequenos e médios empresários que usufruíram do crédito e do crescimento.

Agem, mesmo que inconscientemente, como tropa de choque dos interesses dos endinheirados.

A raiva de muitos da classe média é contra o fato de que esquecidos setores populares estão agora competindo pelo espaço antes reservado à classe média.

Nas primeiras dificuldades viram o cocho e esquecem. Centram-se em interesses mesquinhos, agarrando-se no conto do vigário, que o problema é a corrupção, que surgiu agora e é culpa do Lula e do PT. Argumentos que não se sustentam com uma mínima raciocinada.

Em um verdadeiro tiro no pé, ficam na dependência das elites cuidadoras, com esses pensamentos burgueses que não refletem no bolso.

Apegam-se à cantilena global, ao moralismo tosco, colocando sua cabeça dentro da TV, em seu mundo desconectado com o real. Ou vão às ruas travestidos, cheios de preconceitos, sem conceitos sólidos.

Desorientam-se ao abraçar a simplista abordagem de que os males do Brasil é a corrupção do estado e que o mercado é virtuoso imune a esses problemas.

Esquecem que esse embate não é novo. Desde Vargas domina a história política do Brasil.

Em tempos de crise econômica, onde a política de distribuição menos desigual fica mais difícil, os endinheirados não querem mais saber de benefícios para os subalternos. Querem abocanhar todos os recursos escassos, cortar os investimentos sociais e ficar com o Estado só para eles.

E a classe média vai na onda dessas ideologias que manipula sentimentos e anseios muitas vezes não compreendidos por nós mesmos.

Não se trata de compactuar com mal feitos ou com politicas equivocadas que muitas vezes faz o que não disse e não faz o que afirmou.

Trata-se uma visão de mundo e de sociedade. Na prática a classe média contribui para que o moinho injusto das elites seja irrigado com preconceitos e seletividades, com a fulanização da corrupção. Somos feitos de tolos.

Como sinaliza Jessé souza, o “partido da sociedade para poucos” operante. O contraponto, o partido da sociedade para a maioria popular, vai ter que emergir, impondo a hegemonia dos subalternos.

Se acham inteligentes e acabam tendo comportamento bovino, de manada, reproduzindo factoides, acriticamente, em óbvias manipulações.

Se acham espertos e não conseguem separar a seletiva tentativa de incriminar somente a esquerda e o PT por atos de corrupção. A “fulanização” da corrupção só serve à sua continuidade.

Se acham honestos, éticos e não revoltam-se contra a corrupção endêmica patrocinada pelas elites ao longo de nossa história.

Parece que precisam achar um canal para extravasar seus medos diante da sociedade de risco. Risco de perder status.

E, com todo capital cultural que tiveram privilégio de receber, aceitam a cantilena de que o criminoso é o funcionário do estado ou o batedor de carteira pobre.

Não vemos a mesma indignação contra o especulador de Wall Street, que frauda balanços de empresas e países e arruína o acionista minoritário e embolsa bônus milionários.

Enquanto os primeiros vão para a cadeia os segundos ganham foto na revista time como financista do ano.

Reproduzem o discurso enviesado da corrupção, seletivamente. Posam de éticos e esquecem da humilhação cotidiana da grande maioria do povo da qual tornam-se cúmplices.

Não revoltam-se com a grande desigualdade social do Brasil, poucos ricos e muitos pobres, a grande vergonha nacional.

Odeiam o Lula porque leem na Veja e assistem no jornal Nacional.

Acham até que os pobres podem ter um futuro melhor, mas eles têm que fazer por merecer. Seus filhos têm muito mais e iludem-se que é fruto de seus méritos em um mundo de oportunidades desiguais.

As elites manipulam com competência esse Alzheimer Social e o egocentrismo infantil. Cuidado, pode ser contagioso.

Miro no futuro mas não esqueço o passado. Minha memória recente está ativa e busco compreender a história, juntando os nexos.

Sou classe média e luto cotidianamente contra essa patologia pois acredito na humanidade e que as classes são desiguais.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A PLATAFORMA




P. e o povo de Bouvó não conseguiam sair do, cada dia mais ínfimo, pedaço de terra que os abrigava.

A montanha rochosa, enorme, os empurrava em direção ao mar bravio, com imensas pedras a encurralá-los.

A montanha avança, ou seria o mar?

Eram sufocados, também, por uma minoria que habitava o topo da montanha. Eram obrigados a pagar tributos com parte da sua produção de alimentos e de utensílios. Caso contrário, os povos do topo, represavam os córregos de água cujas nascentes estavam sob seu controle.

Viam com esperança aquela ilha que só aparecia, no longínquo horizonte, em dias claros.

Mas era impossível a saída para o mar. Seja a nado ou mesmo com embarcações. Voar não era coisa para os homens e para as mulheres. Todas tentativas terminaram em desastres.

Eram pedras pontudas, ondas gigantescas, como ninguém pode imaginar. Só o povo de Bouvó sabia. Todos os dias olhavam com medo para as imensas vagas que explodiam nas imensas rochas.

Buscaram, com muitas tentativas e por muitos anos, conquistar a montanha. Várias expedições de populares tentaram atingir o topo. Muitos morreram.

Quem chegou mais perto foi a turma organizada por P. , mas quando estavam quase chegavam no cume, os do topo, poucos moradores de lá, os excluiu provocando avalanches. Muitas perdas de vidas rolando montanha abaixo. P. sobreviveu por um milagre.

No leito de quase morte, entre um sonho e outro, P. idealizou a construção de uma plataforma que sobrepujaria os obstáculos e garantiria o acesso ao alto-mar, longe das ondas gigantes e dos rochedos abissais. Assim poderiam zarpar com embarcações.

“Uma plataforma para avançar, superar as ondas e os rochedos”.

Mas foi recebido pelo povo de Bouvó com ceticismo.

Anos de polêmica. Não foi fácil convencer.

Havia aquele que dizia ser impossível. “Não temos os insumos adequados”.

Alguns apoiaram buscando levar vantagem com o empreendimento, o que gerava desconfiança.

Outros temeram que a liderança de P. crescesse se o empreendimento desse certo. Assim perderiam espaço político e liderança no futuro, naquela ilha.

Vários alegavam não valer o risco da travessia e acreditavam ser uma ilha inóspita, sem garantias para a sobrevivência de todos.

O projeto foi sendo adiado pois a Plataforma precisava do engajamento de todos.

Mas a montanha continuava a avançar sobre o povo, estreitando os espaços e o tempo. Ou seria o mar?

P. defendia que, se fosse para morrer esmagados ou servis, era melhor arriscar, acreditar na utopia. Aquela ilha era a esperança e, como esperança não é uma emoção passiva, exige gente em ação, quase todos decidiram ir atrás de seus sonhos

Premidos pelas circunstâncias, enfim decidiram levar adiante a ideia.

Alguns decidiram não participar e ficar. Eram pertencentes às médias, como eram chamados esse grupo de indivíduos.

Nem todos os médias ficaram, mas uma ampla maioria resolveu fazer juz à denominação e fazer média com os do topo

Decidiram realizar mais uma tentativa de escalar a montanha e negociar com os do topo uma convivência onde se dispunham a uma servidão voluntária.

Nunca se soube ao certo sobre os resultados da tentativa. Parece que ficaram no meio do caminho.

Levaram incontáveis anos a empreitada de construir a Plataforma para o povo que decidiu acreditar ser possível conquistar o mundo novo.

Muitos moradores morreram, outros nasceram. Gerações renovaram-se, mas a ideia da plataforma os manteve unidos diante do medo da montanha e pela esperança de tempos melhores.

E a montanha continuava a se mover. Ou seria o mar?

Por fim, terminaram a construção da plataforma comum e dos barcos que levariam a todos até aquela ilha.

A plataforma era uma construção imponente. Contornava os arrecifes em lugares onde diminuía seu tamanho. Estendia-se a quilômetros, mar adentro, até onde o mar acalmava-se e as ondas não formavam-se.

Em um dia ensolarado iniciaram a travessia. Zarparam em seus barcos rumo a ilha. Os olhares esperançosos compartilhavam corpos ansiosos onde o medo ainda era presente.

O tempo bom não acalmou a fúria do oceano. A travessia foi tortuosa. Vagas enormes desequilibravam os navios. Alguns afundaram. Mas a maioria conseguiu triunfar pois não tiveram medo de ousar.

Surpreenderam-se ao constatar que não era uma ilha. Era um continente.

Por todos os lados haviam muitas montanhas a conquistar.

Anos se passaram e P. despediu-se do povo e subiu a montanha mais alta.

De lá P., ancião, olha para a montanha de Bouvó sendo engolida pelo mar. Ou seria a montanha que afundou sob suas estruturas?

Constatou que Bouvó não era um continente, era uma ilha!

Quem tinha tudo no topo daquela montanha agora tem o mundo líquido que construíram, boiando no mar bravio.

P. espera, tranquilo e solitário, sua luz interior apagar-se.

E consagrou-se à única tarefa de dormir e sonhar.